Possibilidade de coparticipação de até 50%, reajustes pela planilha de custos e regionalização do rol de cobertura são alguns dos pontos criticados

RIO — A possibilidade de uma coparticipação de até 50% do valor dos procedimentos, a ampliação de prazo para marcação de consultas e cirurgias eletivas, a regionalização do rol de cobertura e a possibilidade de reajustes baseado exclusivamente na planilha de custo está longe de ser o que as entidades de defesa do consumidor esperavam como modelo de um plano de saúde popular. A minuta divulgada ontem pelo Ministério da Saúde foi duramente criticada por entidades, advogados e médicos, que esperam uma avaliação criteriosa pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), para evitar um retrocesso nos direitos já adquiridos pelos beneficiários do setor.

Para o diretor da Clínica São Vicente e fundador do site Observatório da Saúde, o cardiologista Luiz Roberto Londres, o projeto apresentado pelo governo representa o oposto do que reza a Constituição Federal, que diz, em seu artigo 196, que “a “saúde é direito de todos e dever do Estado”. Ele lembra que a assistência à saúde pública sempre visou principalmente àqueles que não tinham possibilidades de pagar pelos seus atendimentos e tratamentos.

— O que vemos é a criação de uma importante diferenciação em função da capacidade financeira de cada um. É a criação de uma importante diferenciação em função da capacidade financeira de cada um. Esse projeto desconsidera ainda o que diz a Constituição, que veda a subvenção do governo às instituições pirvadas com fins lucrativos. Pois, sem dúvida, ele visa o atendimento na rede privada com o governo, uma vez mais, abrindo mão de sua responsabilidade constitucional.

Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Proteste Associação de Consumidores, afirma, por sua vez, que tais alternativas apresentadas pelo governo nos mostram que o intuito é tão somente comercializar planos de saúde a preços mais baratos, para atrair uma carteira maior de clientes com aumento da renda das empresas.

— E, caso a conta não feche, o que sabemos que irá acontecer, que os próprios consumidores arquem com os custos por meio de reajustes imprevistos e não regulados ou pela não utilização do plano. Ou seja, não adianta oferecer planos baratos, criando uma falsa expectativa de atendimento neste consumidor, se posteriormente o custo deste plano se tornará extremamente oneroso em razão de reajustes ou aplicação de mecanismo de regulação financeiro com claro caráter restritivo — acrescenta Maria Inês.

Para a coordenadora da Proteste, é inaceitável estipular coparticipação de 50% em qualquer procedimento, sendo este claramente um “fator restrito severo de utilização” que dificultará ainda mais o acesso à rede assistencial e/ou não permitirá o atendimento integral do consumidor. Segundo ela, a ANS tem inclusive discutido em Câmara Técnica qual seria um percentual aceitável de coparticipação a ser aplicado aos planos de saúde, sendo que, no entendimento da Proteste, este percentual não pode ser superior a 25%, sob pena de colocar o consumidor em situação de extrema desvantagem:

—Venho reforçar o entendimento da Proteste contrário à criação de um plano de saúde acessível que seja comercializado pelas operadoras em condições que tão somente irá dificultar ainda mais o acesso à um tratamento digno e integral do consumidor, o que afronta todos os direitos previstos na Constituição Federal, Código de Defesa do Consumidor e Lei 9.656/98.

Na opinião de Maria Inês Dolci, é extremamente preocupante o consumidor perder a cobertura mínima obrigatória que foi conquistada pela Lei nº 9.656/98, cuja proposta vai na contramão do que a ANS tem feito, obrigando o consumidor a enfrentar as filas demoradas do Sistema Único de Saúde (SUS) para casos mais complexos.

O advogado especialista em direito à saúde, Rafael Robba, não vê nos planos populares uma solução para os problemas que o sistema de saúde enfrenta no Brasil, principalmente porque os modelos propostos possuem diversas restrições para o atendimento do beneficiário, o que poderá gerar conflitos entre operadoras e consumidores, aumentando as disputas judiciais.

Justamente por trazer mudanças bruscas nas regras atuais dos planos de saúde e pretender flexibilizar muitos dos direitos já adquiridos, a coordenadora das Promotorias de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Estado do Rio, Christiane Cavassa, defende que o tema seja analisado com muito cuidado.

— Caso aprovada, é imprescindível que haja contrapartidas nítidas em benefício dos consumidores, com transparência, além da garantia do direito à informação, essencial para uma escolha consciente no mercado de consumo — ressalta a promotora.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) reiterou sua posição contrária à proposta de criação de planos populares de saúde, encaminhada para análise da ANS, afirmando que a autorização de venda de “planos populares” apenas beneficiará os empresários da saúde suplementar e não solucionará os problemas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em nota, o CFM ressalta que tais planos, limitados a consultas ambulatoriais e exames de menor complexidade, “não evitarão a procura pela rede pública”.

(…)

O Conselho acrescentou que o tema já havia sido tratado em nota divulgada à sociedade, em agosto do ano passado, quando a autarquia advogou a adoção de medidas estruturantes, como o fim do subfinanciamento, o aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão, a criação de políticas de valorização dos profissionais, como uma carreira de Estado para os médicos, e o combate à corrupção.

“Somente a adoção de medidas dessa magnitude será capaz de devolver à rede pública condições de oferecer, de forma universal, o acesso à assistência segundo parâmetros previstos na Constituição de 1988 e com pleno respeito à dignidade humana”, defendeu o CFM na ocasião, posição que foi reiterada nesta quarta-feira.

Restrição de cobertura, só mudando a lei

Também especialista em direito à saúde, o advogado Rodrigo Araújo, lembra, por sua vez, que qualquer alteração que restrinja a cobertura assegurada através da Lei dos Planos de Saúde (lei n. 9.656/98), somente pode ser executada mediante alteração da legislação e, para isso, é necessário submeter as propostas ao Congresso Nacional, que é quem vota para aprovar novas leis ou alterações daquelas em vigor. Ele esclarece aind que a ANS é a autarquia constituída com a finalidade de regulamentar o mercado de saúde suplementar, mas suas normas, que são classificadas como administrativas, jamais poderão limitar ou ampliar direitos e deveres assegurados em uma Lei Ordinária, norma hierarquicamente superio:

— É possível criar, por exemplo, um plano de saúde com cobertura exclusivamente ambulatorial. Isso, inclusive, já está permitido pela legislação atual. Esse tipo de plano cobre, basicamente, consultas e exames. Devido à limitação de cobertura, o produto nunca atraiu interesse dos consumidores e poucas operadoras o comercializam. A partir do momento em que a operadora comercializa um produto com cobertura ambulatorial e hospitalar, ela não pode excluir atendimentos de alta complexidade — leia-se atendimentos de custo elevado. Isso porque a Lei n. 9.656/98 dispõe que é obrigatória a cobertura do tratamento de todas as doenças relacionadas na Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde, sem limitar atendimentos de alta complexidade.

Para criar um plano de saúde com cobertura para atendimentos hospitalares que excluam procedimentos de alta complexidade, é necessária a alteração desse artigo da Lei, o que não pode ser feito diretamente pela ANS, reforça Araújo.

SUS ainda mais sobrecarregado

Caso seja aprovada a proposta de regime misto de pagamento, que prevê a cobrança de mensalidade mais uma coparticipação mais elevada para ter direito a tratamentos ambulatoriais e hospitalares de baixa, média e alta complexidade, os pacientes que contratarem esse serviço terão que socorrer ao SUS quando necessitarem de tratamentos de alta complexidade, dependendo dos valores que serão cobrados, alerta o advogado Rodrigo Araújo:

— O consumidor somente irá escolher esse produto se esses valores de coparticipação, somados ao da mensalidade, couberem em seu orçamento.

O advogado Rafael Robba também acredita que os atendimentos não cobertos pelos planos populares serão, em grande parte, absorvidos pelo SUS, sobrecarregando ainda mais o sistema público.

—Os incentivos diretos e indiretos aos planos populares, por parte do Estado, podem comprometer ainda mais o orçamento público para financiamento do SUS, prejudicando a assistência da população que depende do sistema público.

Araújo, por sua vez, ressalta que, além de sobrecarregar ainda mais o SUS com esse tipo de tratamento, no sistema público de saúde esse paciente terá que voltar para o início da fila:

— Nenhum paciente com indicação de um médico privado para uma cirurgia chega ao SUS e vai direto para a internação. Ele precisa começar lá no posto de saúde para ser encaminhado para um especialista, que pedirá novos exames e, só então, indicará a cirurgia, momento em que ele entrará na fila de atendimento.Se fosse permitido que esse paciente com indicação de um médico privado fosse encaminhado diretamente para a fila de cirurgia, os demais pacientes do SUS, que não podem pagar por um serviço particular, seriam discriminados e isso também não pode ser permitido.

O governo apresentou três tipos de planos populares à agência reguladora: o primeiro foi o Plano Simplificado, que não cobre internações, terapias e exames de alta complexidade, urgência e emergência ou hospital-dia. A segunda opção seria o Plano ambulatorial mais hospitalar, pelo qual o usuário terá acesso a serviços de baixa, média e alta complexidade, mas começará o atendimento obrigatoriamente por um médico de família ou da atenção primária. Caso este indique o paciente para a rede hospitalar, será preciso ouvir uma segunda opinião. O terceiro plano proposta é o de Regime Misto de Pagamento, onde o usuário paga mensalmente a cobertura de serviços hospitalares, terapias de alta complexidade, medicina preventiva e atendimento ambulatorial. De acordo com valores previstos no contrato, o beneficiário pagará por procedimento feito. Haverá modelos de pré e pós-pagamento.

fonte: http://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/proposta-de-plano-de-saude-popular-desagrada-de-especialistas-em-defesa-do-consumidor-medicos-21033503

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