Em um ano, o grupo de atendimento ao pré-natal, parto e pós-parto, movimentou o sistema obstétrico e já atendeu a mais de 270 mulheres. Modelo mostra que é possível proporcionar parto respeitoso e reduzir as taxas de cesárea

O Brasil está entre os países com as mais altas taxas de cesariana no mundo — 56% em 2017. Em paralelo, a mortalidade materna está crescendo — cerca de 8% de 2012 a 2017. Diante disso, a pergunta é: o que precisa ser feito para reverter essas estatísticas? A solução é clara: um pré-natal de qualidade e um parto seguro e com respeito.

Embora na teoria, pareça “fácil falar”, a realidade é mais complexa. Ainda assim, já existem iniciativas que comprovam que, na prática, também não é tão difícil assim. Quer um exemplo? Desde o nascimento do primeiro bebê, no dia 14 de julho de 2018, o Coletivo Nascer — um grupo transdisciplinar de atendimento ao pré-natal, parto e pós-parto humanizado na cidade de São Paulo — já realizou outros 270 partos. “Hoje, estamos com 180 mulheres no pré-natal e uma projeção de 500 partos no segundo ano, cerca de 40 a 50 por mês”, comemora Ana Cristina Duarte, coordenadora do programa.

A quantidade de nascimentos e as perspectivas positivas são resultado de trabalho árduo, mas, principalmente, no foco em um parto humanizado. Mas afinal, o que é isso? Enquanto diversas maternidades “vendem” partos que se dizem humanizados — com maior contato entre mãe e bebê, incentivo à amamentação, entre outras práticas —, Ana Cristina afirma que é preciso ir muito além. “Humanizar o parto é humanizar o processo, que começa no pré-natal e tem toda a questão de estímulos para que esse bebê venha de parto normal”, explica.

“Nosso objetivo é possibilitar um parto com respeito. Isso inclui o uso das melhores evidências científicas, o respeito ao tempo e ritmo do corpo da mãe e do bebê, o uso criterioso de intervenções apenas quando necessário e uma recepção amorosa ao recém nascido”, diz. Mas no Coletivo, as mães podem, sim, fazer uso de métodos farmacológicos — como analgesia peridural — e não farmacológicos de alívio da dor e até o uso de ocitocina (em casos específicos).

Apesar de a prioridade ser o parto normal, alguns casos também podem terminar em cesariana, mas apenas quando realmente necessário e indicado pelos médicos. Mas isso quase não acontece por lá. “Percebemos com o tempo que o sucesso do parto depende 90% do pré natal”, diz Ana Cris.

Pré-natal coletivo: “É um pouco ilusória a ideia de que a mulher tem um médico dedicado apenas a ela”
Foi exatamente por isso que a equipe, formada por nove obstetras e oito obstetrizes — que são parteiras profissionais —, montou um plano de acompanhamento baseado em muito diálogo durante todo o período da gravidez. O grande diferencial, que torna o modelo acessível financeiramente, é que as consultas não costumam ser realizadas individualmente. As gestantes não têm um médico exclusivo – e isso pode trazer vantagens, que vão além da redução de custos. “O pré-natal é coletivo e promove a integração entre as famílias. Cada grupo de mães e pais se reúne numa roda de conversas que vai abordar várias questões de pré-natal, parto, pós-parto e preparação para a maternidade. As obstetrizes e médicas fazem um rodízio para que as gestantes possam conhecer a maior parte da equipe ao longo do pré natal”, conta.

“Para nós, isso é uma avanço na relação médico-gestante, pois é um pouco ilusória a ideia de que a mulher tem um médico dedicado apenas a ela. É uma ilusão que traz segurança para a mulher e tentamos desconstruir isso”, afirma a coordenadora. No Coletivo, a equipe passa por treinamentos regulares anuais na área de obstetrícia e perinatologia, que incluem pelo menos um congresso e treinamento prático das emergências obstétricas.

Parto: “O objetivo é ter o menor número de intervenções com o mais nível de segurança”
Atualmente, os partos são realizados em dois locais: no Hospital São Luiz, no Itaim, ou no Hospital Sepaco, na Vila Mariana, ambos na capital paulista. “Quando a mulher entra em trabalho de parto, ela costuma chamar sua doula, que ajuda na fase inicial. Assim que evolui, a obstetriz pode fazer uma visita em casa para verificar a dilatação ou combinar de se encontrar já na maternidade, juntamente com a obstetra”, explica.

O atendimento ao parto é focado primariamente nas obstetrizes, para tudo o que é normal e natural, e nas médicas, para as questões que envolvem procedimentos ou mudança de risco. Nesse modelo, ambas estão disponíveis e presentes, mas a médica atende, principalmente, o que foge do baixo risco ou alguma dificuldade no processo natural. Segundo Ana Cristina, isso é o que tem garantido uma alta taxa de partos normais dentro do programa. “Nossa taxa atual de cesáreas é de 13%. As cesarianas serão reservadas aos casos de indicação clínica, como gestantes de alto risco, que precisaram de indução, ou quando o bebê não desce pela bacia”, completa.

“Já para as gestantes com cansaço e/ou dor excessiva, indicamos analgesia, lembrando que a analgesia pode ser feita desde o início do trabalho de parto, se for necessário”, afirma. Outra conquista que a equipe divulga com orgulho é a taxa de episiotomia — corte do períneo na hora da saída do bebê—, que é menor que 1%. No Coletivo, tanto as consultas quanto os partos são cobrados. “Os preços são acessíveis para quem tem planos de saúde, assim como as formas de pagamento, para ampliar o acesso ao parto humanizado para o maior número possível de famílias”, afirma. As consultas custam, em média, R$ 150, e o parto, com médico obstetra e obstetriz, a partir de R$ 4.800.

Experiência: “Finalmente, o parto normal”
Depois de viver uma experiência de parto “frustrada”, em que foi levada a fazer uma cesariana sem qualquer indicação, a professora, bióloga, consultora em aleitamento materno e mãe de dois, Lívia Polichiso, 33, decidiu que a segunda gestação seria diferente. “Na época, eu me culpava. Catherine chorava muito e eu pensava: ‘É por conta dela ter sido arrancada de mim fora de seu tempo. É pela forma que foi recebida'”, lembra.

Quando engravidou do caçula, ela passou a buscar profissionais que entendessem e priorizassem o parto normal. Foi ai que ela encontrou o grupo Coletivo Nascer. “Me encantei com a forma que falavam, firme. Apropriada do tema”, conta. “Mas me assustei com esse negócio de que não saberia quem me atenderia no dia do parto. Até que veio a primeira roda de pré-natal e quando vi, já estava indicando o Coletivo a todas as grávidas que eu via”, completa. “Gostei da troca rica com aquelas mães. Gostei da naturalidade que levavam a gestação. Gostei das poucas intervenções, sem procurar pelo em ovo. Gostei da atenção recebida. Gostei das médicas que se apresentaram, normais, e não em um pedestal. Gostei de sentir que estava em um local que tinha quebrado, antes de mim, os mesmos paradigmas que eu”, diz.

Mas com 35 semanas, uma rotura de bolsa precoce a levou ao hospital para iniciar os procedimentos de precaução. Livia conta que a equipe chegou a sugerir uma indução, mas ela disse que queria esperar. “A equipe não apenas bancou minha decisão, como apoiou, tranquilizou e nos monitorou. Todos os dias, alguém passava para nos ver. Todos os dias, discutíamos as opções. Todos os dias, após ver que tudo estava bem, eu escolhia por esperar ele mostrar que realmente estava pronto”, afirma. “E com 156 horas de bolsa rota, Valentim chegou como imaginei: naturalmente, com zero intervenções em mim e nele, em um parto rápido e intenso, com luzes baixas, nossas músicas, ambiente quentinho, recepcionados pelos braços do pai, mamando por duas deliciosas horas, sem pressa, com cordão pulsando, como deve ser”, conta Livia, emocionada.

“E agora me diz, como e quando — se não fosse uma equipe multicor e de revezamento — eu teria tido este parto? O modelo propiciou isso. Não havia ninguém cansado, de plantão com uma única paciente. Não havia pressa, afinal, a pressa é de quem? Não havia o olhar inviesado que só busca patologia. Não havia protocolos a serem seguidos como se tudo fosse generalista. O sistema se delineou assim porque dar este tipo de assistência é custoso. Exige sensibilidade. Porém todos ganham. É saúde pública e psquica. É vida. É respeito. É humano, porque você é visto como você e não só como mais um. E foi assim que eu ressignigiquei minha história”, finalizou.

Fonte: Revista Crescer

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