Em razão da grave crise que tomou de assalto nosso país, ganha destaque, em noticiários, aquela que, por óbvio, se revela a mais desumana e cruel: a relacionada à prestação de serviços de assistência médica pública e privada. Milhares de decisões judiciais vêm sendo proferidas pela Justiça garantindo ao cidadão o acesso a serviços de saúde, o que tem preocupado sobremaneira os entes públicos e privados que prestam estes serviços à população.

Como desdobramento, muito se tem discutido acerca do papel do Poder Judiciário na solução dos conflitos advindos desta crise na Saúde. A pergunta que se faz é: como pode o Poder Judiciário, considerando as mais diversas variáveis, exercer a sua função de interpretar e aplicar a lei nos litígios envolvendo a prestação de serviços públicos e privados de saúde?

Neste aspecto, não há como não se falar em ativismo judiciário. Na primeira vez em que este ativismo foi sustentado, em 1947, pelo jornalista americano Arthur Schlesinger, numa reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos, foi dito por ele, de forma bem sucinta, que o ativismo acontece quando o juiz interpreta a Constituição no sentido de garantir direitos.

Luis Flávio Gomes sustenta[1] ainda haver dois tipos de ativismos: o ativismo judicial inovador (criação, ex novo, pelo juiz de uma norma, de um direito) e o ativismo judicial revelador (criação pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa. O jurista complementa ainda: “(…) Neste último caso o juiz chega a inovar o ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, sim, no sentido de complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitucional ou de uma regra lacunosa.”

Importante considerar que ativismo judiciário não é o mesmo que judicialização. Esta última se configura na medida que o cidadão, em estado de ameaça ou lesão a seu direito, busca socorro no Poder Judiciário, sendo tal conduta permitida pela Constituição Federal. Contudo, muito embora haja esta nítida diferença, uma constante confusão entre os dois conceitos é revelada especialmente quando se está em discussão, por exemplo, as políticas públicas na área da Saúde.

É de crucial relevância que se estabeleça a diferença entre os dois conceitos, já que vivemos em um Estado Democrático de Direito e o Poder Público tem a responsabilidade de dar efetividade a direitos fundamentais, em especial, a direitos sociais. O Poder Judiciário, como parte deste Poder Público, assim como o Legislativo e Executivo, tem sua parcela de responsabilidade na efetivação destes direitos, e é justamente quando ele, no exercício de sua função, toma decisões com vistas a garantia desses direitos, que surge o conflito entre os dois conceitos.

Em matéria relativa à Saúde, o Brasil enfrenta, atualmente, uma grave crise, da qual o Poder Judiciário não poderia deixar de ser chamado a intervir. A judicialização, portanto, vista por muitos como causa da crise na saúde é, na verdade, consequência. Ao cidadão, como falado anteriormente, que tenha seus direitos violados pelo Estado, lhe foi permitido, pela Constituição, se socorrer do Poder Judiciário, ainda mais quando se está em jogo a sua vida.

A judicialização da saúde tem estimulado o ativismo judiciário nesta matéria e esta realidade só tende a se expandir mais ainda, por conta da preocupação dos ministros que hoje compõem o STF com a concretização de valores e princípios constitucionais e por conta da grave crise de funcionalidade do Poder Legislativo, que estimula tanto a emissão de Medidas Provisórias pelo Executivo quanto o próprio ativismo do Judiciário.

Certo é que a concretização de direitos fundamentais, como o direito à saúde e à vida, não depende somente de um dos Poderes da República, e, sendo estes poderes independentes entre si, a tese de defesa do Estado, em matéria de judicialização da saúde, no sentido de que o Poder Judiciário, com suas decisões em questões relativas a políticas públicas de Saúde, desequilibra as relações com os outros poderes e viola o princípio da independência entre eles, não tem amparo legal.

Quando o Poder Judiciário profere uma decisão garantindo ao cidadão o acesso a um tratamento médico negado pelos entes públicos ou privados responsáveis por sua assistência médica, não está interferindo nas atribuições dos outros Poderes. Certo é que os diferentes Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) são independentes entre si, mas esta independência tem limite na medida em que a Constituição concedeu ao Poder Judiciário, e a ele somente, a função de interpretar e aplicar a lei nos litígios envolvendo os cidadãos e/ou cidadãos e Estado.

As leis em matéria de Saúde são mal formuladas e sistematicamente descumpridas pelos outros Poderes. O sistema de saúde brasileiro é mal gerido e essa má gestão interfere no dia a dia do cidadão, que não tem respeitado seu direito à vida e à saúde. Não há como o Poder Judiciário não ser chamado a exercer a sua função e interferir na solução deste conflito. Não é possível ao Poder Judiciário permitir que as falhas no sistema de gestão das assistências médicas pública e privada no Brasil limitem direitos constitucionais. Não se pode admitir que corrupção, que assola os três poderes da república e esvazia os cofres do Estado, seja um limitador à garantia do direito fundamental à vida e à saúde, e, neste sentido, o ativismo judiciário se afigura absolutamente necessário.

Melissa Areal Pires – novembro de 2016

[1] http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/o-stf-esta-assumindo-um-ativismo-judicial-sem-precedentes/3853

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