Empresários e o ministro da Saúde continuam trabalhando com afinco para mudar as regras de comercialização dos planos. Querem vender contratos com coberturas ainda mais reduzidas e preços menores. O valor médio da mensalidade dos planos em 2016, após sucessivos reajustes, era R$ 280. Com essa quantia, que inclui cerca de 30% de subsídios públicos, não dá para atender tudo. Ficam de fora, entre outros, casos crônicos de saúde mental, medicamentos de uso contínuo e o pagamento ocasional de consultas, terapias, exames e complementação de cuidados hospitalares.

Diminuir preços e não permitir aos clientes nenhuma previsão sobre gastos com saúde é plano de arrecadação de dinheiro e engodo assistencial. Essa proposição seria mais uma peripécia especulativa, não fosse a irrupção de tantas exceções que se tornam regras.

A força econômica e política de interesses privados na saúde cresceu exponencialmente. Uma prova dessa potência é a do poder de mal denominar. Os planos baratos com muralhas para o acesso aos serviços de saúde foram cunhados de acessíveis. Usamos o mesmo verbo quando nos referimos a coisas, objetos e experiências. Diz-se eu tenho sapato e tenho dor, mas ninguém supõe que a dor de um ser humano possa ser trocada, vendida ou emprestada. Os problemas de saúde são determinados pelas disfunções, declínio do corpo, por forças externas destruidoras, como as violências, poluição, aquecimento global e relações com outros seres humanos. Qualquer programa que não intervenha sobre as causas da situação sanitária e tente conferir ao sofrimento, sentimento, sensação e necessidade de cuidado o mesmo status de utensílio está fadado ao fracasso.

Na retomada do debate sobre o Obamacare nos EUA torna-se claro que nenhuma solução diminui a intervenção governamental sem engrossar as fileiras dos sem-seguro ou dos atendidos em regime do por favor, da caridade. A rejeição do sistema de saúde defendido por Trump, baseado na capacidade individual de pagar seguro privado, se efetivou com voto de senadores republicanos. Sinceros adeptos do laissez-faire sabem que o funcionamento de ambulâncias em via pública e bancos de sangue exigem financiamento de fontes públicas e que os custos totais com saúde aumentam quando se exclui segmentos populacionais das estratégias de proteção aos riscos e das chances de obter diagnósticos e tratamentos precoces. No entanto, o processo de debate e proposta nacional de plano barato estão completamente desconectados da racionalidade teórica e das evidências cientificas.

A vontade de mega-vendedores de produtos para a saúde, não mediada ou filtrada pelas instituições públicas, requer que a sociedade permaneça capaz de discriminar enunciados e ações inevitáveis e necessárias daqueles que são inúteis e inaceitáveis. Segundo as promessas empresariais, o país, em função da crise econômica mundial, reduziu e irá cortar gastos públicos com saúde, logo a única solução é comercializar mais planos privados. Porém, a associação automática da austeridade com redução das despesas com saúde é incorreta. Em plena recessão, alguns países ampliaram despesas com a área — por exemplo, França, Alemanha e Holanda — e houve redução no Reino Unido, na Espanha e, é claro, na Grécia e na Irlanda. Assim, menosprezar os efeitos das políticas de austeridade sobre a saúde é um erro tão importante quanto afirmar a inevitabilidade da privatização.

Afirmar que os sistemas universais são mais custo-efetivos pode ser contraintuitivo. Dependendo de como se faça as contas atender a todos, por definição, custa muito mais. Mas as demonstrações existentes são robustas, as políticas de saúde que abrangem a população inteira conseguem conter preços e melhorar as condições e a qualidade de vida. Lobbies empresariais da saúde se valem de desejos e desafios no curto prazo. Exibem pesquisas, pagas por eles mesmos, que confirmam o senso comum: os brasileiros querem ter planos de saúde e concordam em pagar menos pela mensalidade e aceitam, em condições saudáveis, tirar mais do bolso quando tiverem que usar serviços. Porém, ignoram aquelas que retratam a imensa insatisfação com a saúde, até maior dos que a dos que têm plano. Na pesquisa CNI-Ibope, a saúde é “desaprovada” por 85% do total e por 93% e 90% dos entrevistados com maior escolaridade e renda.

Como os brasileiros que querem plano privado nunca foram interrogados a respeito das mazelas para utilizá-los, talvez considerem que a política conduzida pelo ministro da Saúde, cujo carro-chefe é o estimulo ao setor privado, não presta. É perceptível que se os atuais planos, hipoteticamente caros em relação aos que virão, impõem barreiras ao acesso e à qualidade, a tendência é de multiplicar pela redução do preço as dificuldades de ingressar e sair de um lugar ou nível de assistência para outro. É falso propagar uma única alternativa, um caminho sem volta para a organização do sistema de saúde. O uso do termo acessível para alcunhar o plano de menor preço faz uma confusão proposital. Barato significa não ter acesso, pagar plano e ser atendido pelo SUS. Temos a possibilidade de recusar falsas designações, resgatar o sentido clássico do termo acesso, como igual oportunidade de dispor de ações e serviços de saúde, e o de instituições públicas, como organizações que trabalhem para a saúde de todos.

Ligia Bahia é professora da UFRJ

Fonte: oglobo.globo.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *