Desembargador explica quais situações podem ser caracterizadas como erro médico e quais não justificam punição ao profissional da saúde

Nos dias de hoje, demandas judiciais contra médicos crescem exponencialmente. Pacientes exigem reparação de danos materiais e morais supostamente causados por erros dos profissionais. Pesquisa feita pela Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pelo Iess (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar), divulgada no ano passado, estima que, em 2015, os erros médicos resultaram em 434 mil mortes, o equivalente a mil por dia.

O erro médico é classificado como um ato ilícito no exercício da função, em uma das modalidades da culpa prevista no Código Civil, lei que define a responsabilidade civil. Imprudência, negligência e imperícia são modalidades de culpa. Mas quando o que ocorre quando o médico não tem culpa? Afinal, nenhum profissional é infalível. No entanto, estresse, excessiva autoconfiança, falta de estrutura, má formação profissional ou uma breve desatenção podem levar a danos irreversíveis.

O desembargador Miguel Kfouri Neto é estudioso do tema e esteve em Londrina a convite do Congresso Internacional de Ciência Jurídica das Faculdades Londrina. Publicou obras como “Responsabilidade Civil do Médico”, “Culpa Médica e Ônus da Prova” e “Responsabilidade Civil dos Hospitais”. Ele explica que o médico tem que cumprir a a obrigação de meio, que ocorre quando a doença evolui e não há o que fazer, e a obrigação de resultado, em que possui a obrigação de obter o resultado prometido, como no caso das cirurgias plásticas.

Como um juiz pode determinar se houve erro médico?

Claro que a perícia é indispensável nessas demandas que envolvem a responsabilidade civil do médico. O juiz não é doutor em medicina. Não conhece profundamente cada especialidade médica. Em regra, o médico não quer errar. Só culposamente. Ou ele é imperito, imprudente ou negligente. Essa imperícia é apurada em um caso concreto. O médico pode ser o melhor do mundo, mas eventualmente, em um caso concreto, se deixou de adotar determinada técnica da profissão, ou se adotou mal, pode causar dano ao paciente. Ele age, portanto, com culpa, foi imperito, mas não significa que ele não saiba fazer aquilo.

Mas há casos em que o médico faz algo fora dos padrões e assume o risco do que está fazendo?

Isso ocorre quando um médico que não é especialista de uma determinada, quando ele não domina a técnica. Condenei um sujeito que não era cirurgião plástico, mas quis implantar próteses de silicone em uma moça de 19 anos com anestesia superficial. Pelo peso da moça deveria usar duas ampolas de anestésico, no máximo, quatro. E o sujeito usou oito. Que equipamento ele tinha para ressuscitar a moça? Desfibrilador? Oxímetro? Não tinha absolutamente nada. Nesse caso não tem escapatória. Reconheci que houve dolo eventual e ele foi a júri popular.

A responsabilidade dos médicos, geralmente, é subjetiva. Como definir quais as obrigações dos médicos?

Existe a obrigação de meio, em que o médico não é obrigado a conseguir êxito nos procedimentos comuns, que ocorre quando a doença evolui e não há o que fazer; e a obrigação de resultado, em que o médico possui a obrigação de obter o resultado prometido, como no caso das cirurgias plásticas.

A de meio é a obrigação do médico de cuidar, ter zelo, aplicar a melhor técnica contemporânea. Mas não se obriga o resultado, porque às vezes não tem jeito. Na área terapêutica, algumas vezes o sujeito piora por motivo endógeno [que se origina no interior do organismo] e ele acaba morrendo. Se há dois pacientes com dengue e ambos são tratados da mesma forma, com a mesma abordagem, pode acontecer de um se curar e em outro o medicamento não fazer nem cócegas. Os dois tiveram o mesmo cuidado e um sobreviveu e outro morreu. Os médicos não têm essa intenção e por isso são isentos de responsabilidade.

E a obrigação de resultado?

Na cirurgia estética, para embelezar, você vê que muitas vezes os pacientes contratam o médico para fazer a cirurgia plástica, mas o resultado não é o esperado. Uma moça bonita que não está satisfeita com a linha do nariz e pede para dar uma ajeitada e o médico estraga o nariz dela. Claro que se o cidadão se acidenta e arrebenta a cara e vai ao cirurgião plástico para tentar voltar ao que era é obrigação de meio, pois não teria como o médico prometer que ficaria igualzinho.

O que os cirurgiões plásticos dizem sobre isso?

Os cirurgiões plásticos reagem a isso e alegam que têm a mesma obrigação que os demais médicos, que o que fazem é obrigação de meio, alegando que a pele reage de maneira diferente. Dizem que se a pele é mais escura tem tendência de formar queloides de borda grossa. Mas os tribunais têm sido rigorosos. A obrigação nas cirurgias estéticas é de resultado.

Existe um meio-termo?

Teve um caso em Curitiba de uma moça que tinha gigantomastia e fez redução de mamas por questão postural e de saúde da coluna, mas não se satisfez com o resultado estético. Ela entrou com uma ação e isso foi parar no STJ (Supremo Tribunal de Justiça), em Brasília. A relatora disse que existem três espécies de obrigações na cirurgia plástica. A obrigação de meio (reparadora), de resultados (estética) e mista, que foi a desse caso, que tem a finalidade de corrigir postura e coluna. Deram provimento especial e julgaram improcedente o pedido de indenização. O STJ decidiu que o médico não deveria pagar nada.

Ainda existe corporativismo entre os médicos nos julgamentos?

Como a medicina não é ciência exata, muitos médicos alegam que houve uma intercorrência na cirurgia, que pode ser uma síndrome rara ou pouco frequente. O juiz vê aquela alegação, mas como ele pode saber se expressa a verdade? Ele nomeia um perito, que é outro médico. Durante muito tempo vigorou a crença da existência de uma “máfia de branco”, só que nos dias atuais mudou de figura. O próprio CRM (Conselho Regional de Medicina) tem interesse em apurar esses fatos. Uma condenação repercute sobre toda a classe. Acredito que esse corporativismo diminuiu. Há casos em que o Conselho julga o médico sob o ponto de vista ético.

Quando um médico realiza a cirurgia e na hora de fechar a sutura delega para o médico residente. Se acontecer, por exemplo, do residente esquecer gazes ou instrumentos cirúrgicos no paciente. Nesse caso, de quem é a responsabilidade?

Aí o médico cirurgião é o imprudente. Imprudência é quando se cria perigo a outra pessoa sem necessidade. Bem na hora da sutura, quem é o médico? É o cirurgião. Se é o médico residente que cometeu o erro, respondem o residente e o preceptor, que estava orientando. Mas tudo depende de examinar o caso concreto.

Um médico pode ser condenado por erros decorrentes da falta de estrutura?

Julguei recentemente um caso em que inocentei o médico. Não se pode cobrar do médico a responsabilidade pela melhoria do sistema de saúde. A mulher chegou em uma unidade de pronto atendimento com dores lombares, e a recepcionista deu um cartão verde, indicando que não tinha urgência e nem emergência. A paciente esperou do meio-dia às 15 horas para ser atendida e o médico examinou e receitou um analgésico, recomendando que se as dores voltassem era para ela retornar à unidade.

Ela atravessou a rua e foi comer um salgadinho no bar. Sentiu de novo dores fortes e só deu tempo de atravessar a rua e voltar para a unidade de saúde para cair morta, de infarto. O médico foi acusado de homicídio culposo, porque teria sido negligente. A acusação destacou que ele deveria ter internado e pedido exames complementares. Entendi que naquele contexto, um médico sem estrutura de hospital e sem aparelhos para realizar exames, não poderia ser punido pelas mazelas do serviço público. Ela estava com queixa de dores nas costas, mas estava andando.

O sr. pode citar outro caso?

Teve um episódio de Alto Paraná (Noroeste). No dia do Ano Novo, o médico ficou atendendo no pequeno hospital que existe ali até uma hora da madrugada. Como ali o espaço era pequeno, os médicos de plantão alugaram uma casa a 100 metros do hospital para descansar. Ele saiu, para comer algo, quando a enfermeira telefonou dizendo que um sujeito bêbado estava sentindo muitas dores nas costas. O médico pediu para interná-lo, que ele iria retornar às duas horas, mas o paciente morreu de infarto. O juiz condenou em primeira instância e o recurso foi para o Tribunal de Justiça. Ele foi absolvido pelo CRM, que destacou que o médico teve até excesso de zelo ao internar o paciente. Como saber que ele iria infartar?

E quando o paciente sofre por problemas no hospital?

O hospital tem três tipos de atos. Tem o extra médico, que é, por exemplo, a alimentação do paciente, se serve alimento deteriorado. Se há uma instalação fixa como uma lâmpada e ela estoura em cima do paciente. Nesses casos não tem a ver com o médico e o hospital responde pelo Código de Defesa do Consumidor. Há responsabilidade objetiva.

No caso do problema provocado por um médico, tem que provar a culpa dele, se foi negligente, imprudente ou imperito. Isso acontece quando só o médico que prescreve determinado tipo de terapia ou realiza cirurgia. Nesse caso, o médico e o hospital respondem solidariamente e a vítima pode exigir indenização de um ou de outro. Geralmente o advogado sempre vai querer ir atrás do hospital, porque tem muito mais facilidade de realizar o pagamento, pois tem patrimônio maior, tem entradas mensais de dinheiro, ou um bem pode ser penhorado. Mas se no exame de radiografia o técnico erra a dosagem e queima o paciente é o hospital quem responde. É um ato extra médico.

Um hospital pode recusar o atendimento a um paciente?

Uma menina de 11 meses que era atendida pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em uma cidade-satélite de Brasília precisava ser internada em uma UTI particular de Brasília. O juiz concedeu a liminar. O pai extraiu a decisão da internet e imprimiu a liminar. Telefonou para a plantonista em Brasília, pegou a ambulância e foi para o hospital de lá. Tinha mudado o plantão e o médico disse que não iria internar porque não era um hospital do SUS. Ele questionou a oficialidade do documento, porque não tinha carimbo, e nem deixou a criança descer da ambulância. Pouco tempo depois a criança morreu.

O caso foi parar no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o ministro do Ricardo Vilas Bôas Cueva disse que ninguém pode assegurar que ela sobreviveria, porque o estado de saúde era muito debilitado, mas pelo menos uma chance de cura ela teria se fosse internada. Ele disse que por questão de humanidade, de solidariedade, deveria fazer o atendimento, e vendo a gravidade do caso alguma providência poderia ter sido tomada. Essa é uma teoria nova, que diz que há perda de chance de cura ou sobrevivência. O socorro tem que ser o possível.

E no caso do médico Roger Abdelmassih, condenado por estupros de pacientes?

Nesse caso envolve dolo e culpa e isso envolve premeditação, pois para realizar a reprodução assistida ele aplicava anestésicos para deixar as pacientes grogues para se aproveitar delas. É o mesmo caso do Eugênio Chipkevitch, que era hebiatra e foi condenado por abusar sexualmente de seus pacientes. Ele ficava se esfregando em adolescentes e filmava tudo. As 35 fitas foram encontradas no lixo. Nesses casos, a demanda de responsabilidade civil pode acontecer, mas o pior é a penal. O que custa um sujeito desses manter uma enfermeira mulher durante as consultas? Evita qualquer acusação de assédio e evita a tentação.

Fonte: folhadelondrina.com.br


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